segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

NATAL 2008


NATAL 2008
O Advento coloca cada um de nós cristãos na expectativa da chegada do Senhor. Faz-nos viver um tempo de profunda reflexão e transformação de vida, em virtude do Senhor que vem. Ele veio, Ele vem , Ele virá. Veio na Encarnação. Celebramos isto no Natal. Maria 80 deseja a todos os amigos cibernautas BOAS FESTAS.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

AS MINHAS LEITURAS


AS MINHAS LEITURAS
Vejo-me sentada num maple castanho, no escritório do meu pai, com um livro sobre os joelhos – ainda não sabia ler – mas o desejo era tanto, que folheando e apreciando as ilustrações, eu, embevecida inventava a sua leitura.
Agora, vejo-me em passo largo a aprender a ler com a minha avó, na Cartilha João de Deus. Depois foi um salto para iniciar as leituras infantis: “ Os desastres de Sofia”, que muito me afligiram por causa do banho quente dado à boneca de cera, “As meninas exemplares” também da Condessa de Ségur…mas aquelas que mais ficaram gravadas na minha memória, foram algumas da autoria de Monteiro Lobato, deste destaco: “A história do mundo para as crianças” “A geografia de D. Benta” “Aritmética da Emília”, D. Quixote de la Mancha para as crianças” de que guardo, particularmente, o modo como o Sancho Pança comia – nacos e nacos de carne desapareciam no canudo das goelas…”. Claro, D. Benta, Narizinho, Pedrinho, o visconde e a Emília viveram também comigo.

Já adolescente, os livros de Philips Openheim tornaram-se-me inesquecíveis. Decorriam na alta sociedade londrina, algum tempo antes de eclodir a 2ª guerra mundial. As personagens, espiões de alto nível, tinham entre si um relacionamento moderno, descontraído, de flirt de amor subtil, que me deliciavam mais do que as aterradoras expectativas de guerra.

Mulherzinha, com Max du Veuzit e M. Delly, passei a viver em ambientes diversos: palacetes, quintas, encarnava-me em donzelas ingénuas, puras, que se apaixonavam “à la folie” por belos fidalgos, orgulhosos, taciturnos, inatingíveis. De M. Delly, recordo um jovem de nome Arpad, que era tão deprimido, que os jardineiros, todas as manhãs, percorriam os jardins do palacete, para apanharem as florinhas das planta silvestres que no seu modesto colorida, entristeciam ainda mais o jovem proprietário.
E com estas leituras tolas mas para mim encantadoras, talhei o meu perfil ideal – queria um homem bonito, melancólico e muito romântico – e encontrei! Mas Max du Veuzit nunca descreveu o percurso desses amores na estrada da Vida a dois, esqueceu de assinalar as célebres frases proferidas no acto nupcial…prometo-te amar, honrar e obedecer na saúde, na doença, na riqueza, na pobreza na alegria e na tristeza… jamais se referiu ao que eu chamarei de CAMINHO, com as suas voltas, curvas, subidas, descidas e tombos também. Cheia de sonhos, enquanto bordava o meu enxoval, tirava sempre tempo para a leitura. Alexandre Dumas: “Os três mosqueteiros” “O Visconde de Bragellone” “O colar da Rainha”… Como desejei empurrar o Cardeal Mazarino e a bela Milady com a sua rosa tatuada nas costas, pelo inferno adentro! Inesquecível também, o banho do velho Thibault numa tentativa de lhe salvar a vida, e onde é descrito com grande realidade o seu velho corpo já decrépito.
Agora, mulher amadurecida, trilhando um caminho sem flores, monótono, triste, os livros foram o meu cajado. Devorava-os: os nossos clássicos, “A prima Raquel”, com os seus chás medicinais, “Rebeca” “O Arco do Triunfo” “A Pomba” “Mr Sommer”, “O jardim de Alla” e muitos outros me ajudaram a e evitaram que me sentasse numa curva do meu árduo caminho.
Mas não há mal que sempre dure, e vem o tempo em que lia para apreciar e não para entorpecer. As idas para férias para o Porto Moniz são imemoráveis. Verões e verões com os amigos SOL, MAR e LIVROS. No WW atulhado de malas, sacos e mantimentos Eça de Queiroz tinha lugar cativo. Margaret Mitchel (E tudo o vento levou), Franz Werfel ( A canção de Bernardete) e mais outros preferidos, já lá estavam à minha espera. E a propósito do Eça, estava eu, uma tarde, comodamente recostada, no meu balcãozinho donde se desfrutava uma bela vista do mar – entra na minha cozinha um gato esfomeado e comeu a carne que estava para ser guisada, para o jantar! Claro! Quem pagou foi o Eça
Mas, agora, recordando algumas das minhas leituras, reconheço que Max du Veuzit inculcou em mim uma hiper-sensibilidade que me levou à leitura dos Salmos de David (Desperta Senhor, porque dormes? Desperta e não me rejeites mais para sempre…) pois deste modo, sentia-me em união com a minha mãe que se entristecia muito com a minha ausência. E mais, como me empolgava quando a mãe, quase no fim da vida ainda recitava Cyrano de Bergerac falando à Roxane sobre a ternura dum beijo:..( un point rose qu’on met sur l’i du verbe aimer; c’est un secret qui prend la bouche pour oreille;un instant d’infini qui fait un bruit d’abeille;une comunion ayant un gôut de fleur…).
Hoje, reformada, livre, livre de trabalhos, cuidados, deveres, só faço o que me dá prazer…ler, é claro, é uma das principais opções.Ler, conhecer novos escritores que eu ignorava por completo. Apaixonar-me por Peixoto (…durante meses não sobreviver. Depois, muito devagar, como um vício que se recupera, fui encontrando pedaços de mim…) E Alexandre o’Neil (… um hoje que nunca é hoje, um amanhã que já é ontem…) Kalil Gibran (…quem me dera que pudesseis viver do perfume da terra e sustentar-vos como as plantas apenas de luz…).
E tenho ainda muitos outros à minha espera!
Que Max du Veuzit não sinta ciúmes.

Teresa

A casa da minha amiga Paz


SANTO DA SERRA
A CASA DA MINHA AMIGA PAZ

Quero falar da minha amiga Paz, com quem convivo quase diariamente, com paciência ouve-me, compreende-me, acompanha-me. Por vezes afasta-se, mas volta sempre, cada vez mais amiga, mais transparente.

Só agora me convidou a ir a sua casa, lá no alto, no meio das montanhas. Preparo-me para a visitar, mas primeiro acomodo a Inquietação, muito confortavelmente, não vá ela fazer-me a partida de lá ir ter comigo. Levo o Riso pois sei que a Paz vai gostar da sua presença.

Após um percurso ziguezagueado, vejo-me em plena serra , com aquele perfume que lhe é peculiar de folha abandonadas, feiteiras, pinheiros, velhos troncos que a humidade persistente apodreceu. À minha frente um semicírculo de árvores, que, como um biombo verde dá intimidade a tanta grandeza.

A Paz chama-nos lá do alto e subitamente encontramo-nos na sua casinha, tão confortável, coberta de agulhas carinhosas, como um grande ninho feito de amor . O Riso debruça-se logo para se divertir com os coelhos fugidios, os pássaros que casualmente passam sobrevoando o arvoredo. O Ar é puro e leve, lava-nos os pensamentos, arrasta-os consigo. A Paz ensina-me a viver no seu mundo: ouvir o silêncio, entregar-se ao balanço do vento, olhar o mar distante, esquecer tudo o que poderia causar perturbação. Não trocamos palavras, de mãos dadas, deixamo-nos embriagar pela paisagem que nos rodeia e que vista lá do alto é tão ela e cheia de luminosidade.

Sob os telhados escorregadios adivinham-se s pessoas ocupadas nas lides do dia a dia. Sorrimos com cumplicidade, porque na verdade somos seres privilegiados, sem compromissos, sem obrigações.

Mas alguém nos chama lá de baixo, espreitamos curiosas, é o Apetite – desçam, uma Abelhinha diligente preparou-vos uns petiscos deliciosos -. Descemos para saborear a merenda.

O tempo vai-se afastando e quase sem darmos conta da sua fuga, já o Sol ns pisca o olho, fazendo sinal que quer dormir.

Despeço-me da minha anfitriã, da Paz e do Riso, acompanha-me a Saudade, para recordarmos juntas um dia feliz.

O Nevoeiro cerimonioso vem apresentar-nos os seus cumprimentos de despedida;
Adeus
Nevoeiro amigo
Adeus

Maria80

uma visita

Harry Potter visitou-me enchendo a minha casa com o seu mundo de fantasia.

Bicadas sucessivas na minha cabeça acordaram-me de um sono profundo, três corujas com seus sábios olhares chamaram-me veementemente:

- Acorda, acorda, este hábito que os muggles têm de dormir fá-los perder momentos de magia.

Inexplicavelmente vejo-me junto da vitrine dos meus sapatinhos,


Uma bruxa desdentada, com a ajuda da sua vassoura, abriu-me as portas de par em par, barreira que me separava dos meus amiguinhos. Harry com a sua varinha mágica dá-lhes vida; seres liliputianos calçam os sapatinhos à sua época e imagem.

Entusiasmados e eufóricos, vieram todos ao meu encontro num desejo de quebrar o silêncio que há vários anos os aprisionava.

Os anjos de Sévres, arrastando sua grinalda juntaram-se ao anjinho solitário e sobrevoaram-me alegres com sua liberdade.

Validoso por ter sido o primeiro da colecção, o sapato verde recorda a minha ida ao sótão onde o encontrei dentro de um velho baú.

Uh, uh, acenava-me o tinteiro pondo de lado a tristeza da sua inutilidade.

O gato feliz nem se esforçava para apanhar o rato.

O paliteiro correu para cima da mesa de jantar para ocupar o seu posto.

O mensageiro do amor veio até mim a fim de eu poder ler o recado apaixonado que transmite.

Damas gentis tudo pisavam com seus sapatinhos de salto.

As botas, cheias de botões faziam inveja à Juliana do primo Basílio, que certamente as iria exibir em algum jardim público.

- Vim da Índia!

- Sou um Cowboy!

- Vim de Israel!

O meu avôzinho, com sua bota de elástico aproximou-se da caixinha de café para cheirar uma pitada.

Os artesanais sentiam-se discriminados, mas a figurinha do Tosco, realçou perante todos a arte dos barristas que os moldaram.

Aproveitando a confusão o vagabundo de Paris põe-se a recolher esmola, um hábito que anos de inércia não fizeram esquecer.

Procuro Harry para lhe agradecer tanta magia – Só tu querido feiticeiro, poderias por a comunicar tantos seres, oriundos dos mais variados pontos do globo. Ele olhou-me com amizade e, ajustando seus óculos, enrola-se em sua capa e prepara-se para fugir acompanhado por seu amigo Hagrid.

Antes que se acabasse a fantasia aproxima-se de mim o charutinho:

- Lembras-te de mim? Fui comprado numa tabacaria por um parzinho de namorados!

- Jamais te esquecerei, respondi pegando-lhe com muito carinho!

RECEITA DE XAROPE PARA TOSSES PERNICIOSAS



1ª Parte – O Jardim da avó

O arco iris desceu ao jardim, suas cores variadas reflectiam-se na multiplicidade das flores. Os vermelhos eram representados em degradé, nas perfumadas carochas cor de vinho escuro, nos pinceis menos negros, nas rosas vermelhas, nas eufórbias garridas, nos gerânios, nas camélias e no tom pálido das roseiras espinhosas, cor de rosa, cujo cheiro intenso era aproveitado para perfumar as travessas de arroz doce.
As violetas receosas, os lilases atrevidos que trepavam ao balcão, os lírios, as francílias, as sobrálias, todas elas davam ao jardim vários cambiantes de cor roxa. Os amarelos saltitavam aqui e ali, nas aleluias, na roseira, trepando escada fora, na aromeira com seus fofos pompons que se arrumavam amigávelmente nos ramos da frágil árvorezinha.
Todas, todas as flores eram abraçadas pelos verdes buchos que em forma geométrica limitavam os canteiros. Uma fila de brincos de princesa dava a forma de quadrilátero a toda a área em flor.
Era um jardim para passear e não para estar, como nos verdes relvados à inglesa, jardim para admirar a beleza das espécies, para se deixar envolver pelos perfumes, de um modo especial o da pequena magnólia que não se deixava esquecer; enfim, um jardim onde as visitas, antes de entrarem para a sala, podiam usufruir da sua beleza, cor e odores.
Era assim o jardim da Avó…..

2ª Parte – A receita

- duas mãos de agrião
- 1 quilo de açucar mascavado
- 45 caracois, dos grandes, raiados

Põem-se os ingredientes às camadas num tacho de barro herméticamente
Fechado e vai ao forno durante uma hora. Terminado o tempo de cozedura, o
Liquido é coado e junta-se-lhe depois um frasco de mel de abelhas.

Tomar uma colher de chá, várias vezes ao dia.

Esta receita, no tempo em que a tuberculose era um espectro, constituia uma
arma eficaz para combater tosses teimosas que poderiam ter mau desfecho.
E, para comprovar a sua eficácia aqui estou eu com 81 anos de idade, a quem
o bacilo de Koch nunca teve o prazer de me afectar.
Mas para cozinhar esta mezinha, havia falta de uma matéria prima – os
caracois. Era destacada uma criada para os poios de bananeiras da vizi-
nhança pois os animaizinhos tinham de ser grandes e raiados de amarelo.
Para controlar este problema a Mãe pensou, pensou no modo de poder
abastecer-se deste precioso ingrediente, assim, seguindo esta linha de
pensamento, resolveu instalar no jardim da Avó várias famílias de caracois
que se multiplicaram, alimentadas pelas plantas tão viçosas, sempre frescas,
regadinhas diáriamente com a água do pocinho em ogiva, caiado de vermelho.
Eu não apanhei tuberculose, mas a Avó ficou muito triste com os pequeninos
Moradores do seu jardim!!!

Festa nossa Senhora do Carmo




“Ó Maria!, Vós sois aquele jardim fechado
no qual se encerra o dador da vida!
Em Vós se encontra o próprio Deus,
O Céu e as criaturas.
É pelo próprio sangue de vós recebido
Que todo o mundo foi salvo.
Se não fôsseis vós, ó Maria
Para mim não haveria paraíso,
Eu não encontraria Deus”

S .Maria Madalena de Pazzi
(1566 - 1607

Uma Tarde Lisboeta




Quando vivia em Lisboa, recebi, duma amiga, convite para assistir a uma passagem de modelos de uma modista de alta costura, Mme Lopez.
A moda da Primavera desse ano, cinquenta e tal, era revolucionária, as linhas justas deram lugar às soltas que deixavam adivinhar o belo ou o roliço corpo que cobriam.
Houve troca de telefonemas, pois apesar da estação, desencadeou-se nessa tarde um temporal impiedoso…era aconselhável levarmos as nossas peles, portanto, sobre o meu vestido “inteiro” última moda, navegava um medalhão antigo num longo cordão de ouro a apontar-me o umbigo. O meu “petit-gris” dava macieza ao trage. Podre de chic!
Da minha amiga só recordo uma bela estola de vison e um chapelinho maroto cujo véu sombreava uns lindos olhos verdes disfarçando, assim, o seu ar campestre. O seu novo velho marido obsequioso, escorregadio, conduzia um opulento carro.
O salão de chá do Hotel Embaixador estava snobíssimamente repleto, cada mesa ocultava uma história; o som da música era envolvente.
Eu não era uma provável compradora, por isso “atirei-me” a observar pessoas, toilletes, adivinhar sentimentos; a orquestra tocava, tocava, seus sons ajudavam o meu devaneio.
Ao nosso lado, uma mesa era ocupada por um grupa de “tias”, mulheres artificiais, ele-
gantíssimas quanto feiíssimas que me fizeram sonhar com o Hino Nacional:

Contra os canhões marchar, marchar
,
As modelos desfilavam “lingerie”. “peignoirs” roupa que nos levava à intimidade da alcova. A música era sugestiva:

Quand’il me prends dans ses bras...
Il me parle tous bas...
.
O chá está a ser servido, magnífico, adivinhava-se dispendioso.
Os empregados apresentavam-nos bandejas de sandwiches, brioches, serviço verdadeiramente requintado.
Numa mesa próxima á nossa, uma família opulenta, os brilhantes faziam-se adivinhar pelos seus reflexos. O pai, julguei eu, figura de africanista, vestido de linho branco esquecido da chuva que se fazia sentir no exterior, respirava fortuna.
Do grupo fazia parte uma nostálgica mulata. Seriam as suas lágrimas negras?

Enquanto na senzala trabalhava o seu amor
Mãe preta embalava o filho branco do senhor…

Aqui perto, despertou-me a atenção, uma figura seca, mística, seráfica, parecendo estéril de sentimentos. Agarrava um crucifixo de ouro que usava ao peito, devia estar pensando: oh quanta vaidade, quanta veleidade… que perda de tempo nesta tarde social Aquela nem em sonhos se lembraria do bicho-homem, nunca teria sonhado nem que fosse com um bispo a bater-lhe à porta!!!

No céu, no céu, no céu eu estarei…

Um chapéu vermelho lindo, lindo, olhava para mim, assente numa cabeça ruiva, rosto gorducho, empoado, mulher de algum director de alguma empresa, Oh, eu conheço-a e pergunto-lhe em pensamento – Sara, trocas o teu chapéu por uma noite de amor?

Beja-me… Beja-me mucho.. como se fuera esta noche la ultima vez...

Os sons sucedem-se, os bolos passam, os modelos desfilam, só não reage aquela além, vestido com blazer branco, ao peito uma rosa negra como negras eram as suas olheiras, olhar sonhador, saudosa de estar ao pé de alguém? Ver olhos que se olham? Apaixonada? Arrependida?

Non, rien de rien, non je ne regrette rien…

Que giros ! Aqueles dois, visivelmente à parte do grupo que os acompanhava. Ela de boina preta, que lhe ocultava o cabelo, pedra verde alegrar o veludo negro. Estava embevecida pelo seu par, ele feioso, galante, óculos escuros a esconder olhar de conquista, paternalmente debruçado para a sua interlocutora, como paternalmente lhe assentava a mão no ombro. Pela sua atitude recitava, imaginei eu! O maroto estava a insinuar-se à custa de Miguel Torga:

Canto ou não canto as tetas da donzela/ que daqui da janela/
Vejo no limoeiro…

O desfile está no auge, vestidos para dançar em noites quentes, aguarela do Brasil, está
no ar…

Brasil, ó meu Brasil brasileiro…

Esta música faz-me lembrar um barco a partir, angústia duma separação.
O som de Ravel “acorda-me” a passagem está a terminar com a aparição de um vestido de noiva, já o Bolero no seu cresacendo, foi uma apoteose, Mme, Lopez agradece os aplausos.
Como o espectáculo está no fim o marido da minha amiga sai discretamente para ir buscar o carro.
-Terezinha, que horror, não tenho dinheiro para pagar o chá, o meu marido esqueceu-se!
Juntámos os nossos haveres, a custo pagamos a despesa. Que vergonha! Tão elegantes e nem demos uma gorgeta ao empregado!!!

Hei, você aí
Me dá dinheiro aí
Me dá dinheiro aí


Maria80

Pascoa 2008


Um poeta madeirense deixou-nos um poema que nos faz reviver a quadra litúrgica da Quaresma.


HORA DE NOA
Quando na cruz, ao pôr-do-sol, morreu
O pálido rabi da Galileia,
Tudo em redor no mundo escureceu
Só o espírito místico vagueia.

No nosso pensamento anoiteceu
A luz da vida, e aniquilou-se a ideia;
Tudo depois, tudo se perdeu
No caos da sombra, negra maré cheia!

E uma chaga no corpo magro e hirto
Se transformou em flor de mirto,
Na hora em que Ele encerrava os olhos pretos.

Hora de Noa, hora d’oiro e sangue…
E assim, no cálice dessa flor exangue,
Eu molho a pena, e escrevo os meus sonetos

Hora de Noa, 1917
CABRAL DO NASCIMENTO

As duas Velhas


AS DUAS VELHAS

Ao terminar a leitura do magnifíco livro Cal de José Luís Peixoto, tive um desejo forte, incontrolável, como um vómito que não é possível reter, de contar também uma historieta acerca de duas velhas.
Herdei uma propriedade onde está construída a minha casa e no quintal há um casinhoto, nele vive uma velha; herdei a casa, o casinhoto e a velha. Sempre esteve no palco da minha vida,
nova, menos nova, madura, entradota, velha, muito velha. Também herdei o marido que teve a bondade de partir para sempre, não fosse ele um velho de ouro, caso contrário, ainda estaria cá neste nosso mundo.
No quintal, entre a casa e o casinhoto, foi plantada uma abacateira, e o panorama é este: a
árvore a crescer, crescer, pujante, viçosa, dando frutos, rindo-se de nós, a envelhecer, a envelhecer, sem dar frutos .Os seus ramos abraçam a casa e o casinhoto num desejo, talvez, de nos aproximar, mas não o conseguiu, visitar a velha seria equivalente a tirar uma fotocópia.
Raramente lá vou, mando-lhe fruta, biscoitos, pudins. Não, visitas não, haveria sempre uma comparação. Ah! Os cabelos dela estão melhores do que os meus, mais fortes. Oh! A menina(é assim que ela me trata) anda tão bem e eu já não me aguento. Ui! Eu tenho barba que corto diáriamente e a menina só tem um grande bigode!
Mas, afinal, a velha, um dia, teve uma grande utilidade; a minha gata Luna, trepou até os ramos mais tenros da abacateira, podendo assim, saltar para o telhado, mas não soube descer. Esteve
lá dois dias, miando, miando com o jejum quaresmal. Por fim, chamei os bombeiros, mas eles ocupados, só poderiam vir ao fim do dia e a gata não parava de miar.
No desejo de atrair o animal para a beira do telhado, para assim o poder agarrar, chamava incessantemente: Luna, Luna; até que ouvi, vindo do casinhoto, uma voz rouca – ponham uma lata de sardinha aberta que a gata vai aproximar-se. E assim aconteceu!!!
Salva a minha gatinha, eu, a velha de cá, mandei oferecer à velha de lá uma grande fatia de tarte de maçã. Para nós duas uma longa vida.
Perdoa, José Luís Peixoto, esta imitação tão pobre.

MARIA 80

o Meu Mirante


O meu mirante – uma recordação




Orgulhoso, altaneiro, presença sólida, silenciosa, teus pilhares quais sentinelas atentas perfilhavam-se militarmente. Sobre ti, meu velho amigo, assentavam os corredores da vinha jaquet, por vizinhança lá estavam as goiabeiras e as bananeiras cujos diálogos surdos tu escutavas pachorramente.Ao fundo a anoneira secular recomendava-te as crianças. Deliciavas-te com o ruído da água de rega que nas levadas corria para cumprir a sua missão, as rosas cor de rosa, perfumadas, para enfeitar o arroz doce, alegravam as tuas pedras. Em teus muros, debruçaram-se várias gerações que vinham casualmente ver o sobe e desce da rua ou os eventos paroquiais: arraiais, bandas de música, procissões; para estes acontecimentos eras engalanado com balões de papel cor de rosa.Impassível, assististe ao desfile dos pescadores que em cortejo de fé, carregaram aos ombros enormes bolas de pedra com as quais armaram o terço que rodeia a imagem de N. S. do Terreiro da Luta. Serenamente, ouviste as declarações de amor feitas por jovens enamorados, às suas amadas debruçadas em teus muros. Imperturbável, escutaste os choros e lamentos dos familiares que iam enterrar os seus mortos no antigo cemitério de S. Luzia.No meu coração não estás destruído e junto aos teus muros: descem, descem, descem carros com noivas emocionadas que vão casar à nossa paróquia; sobem, sobem, sobem bebés a baptizar com os respectivos padrinhos muito convictos do seu papel; correm, correm, correm os carreiros que obrigatóriamente apontam aos estrangeiros a nossa igreja dizendo ‘S. Luzia church’. depressa, depressa, depressa, logo pela manhã vão os empregados a caminho dos respectivos trabalhos; voltam, voltam, voltam, ao fim do dia, os que saem, saem, saem para os seus afazeres.E assim, com estas recordações, quando subo, subo, subo ou desço, desço a minha rua, nunca esqueço a tua presença, meu mirante querido e aceno-te sempre, como me faziam os estrangeiros, quando em criança me viam lá no alto, junto a ti, desfrutando o movimento quase contínuo dos carros de cesto.






Maria80

Balança

Pôr na balança valores: nada Tens, nada vales




A palavra “partilhar” dá-nos a ideia de compreensão, união, amor, no entanto a palavra “partilha” tem-me feito sofrer.

A ARITMÉTICA NA VIDA
Somar (+)
Arrumar algarismos, 10+10=20, 50+50=100
Mais milhares
Mais milhões,
Desejo insaciável de ter +
Querer esfaimado de poder +
Enriquecer, “engordar”

Somar
É dar 1,2 beijos
numa carinha enrugada
numa pétala rosa de uma criança,
amor,2 e 4 mãos que se afagam
somar amizades, tu e eu, nós
juntar núvens, contar ondas na praia
uma, outra, sempre.

Diminuir ( - )
8-5=3 3-3=0
juros, letras
coutos de cheques
bolsos vazios
carteiras sem moedas,
procurar nas gavetas, estará alguma perdida por aí?
Diminuir é mau companheiro
É esticão
É enlouquecer de penúria
Carregar zeros que pesam como calhaus
Chupados pelo mar sôfrego,
Pôr na balança valores: nada
Tens, nada vales; o que é mais,
Pesa menos, contrariando o prato da balança
Que desce quando deveria subir

Diminuir
É ter menos peso,
Menos roupa
Menos desejos
Nada para levar
Pronta para voar

Dividir(/)

É desunião
É desamor
Árvores que crescem juntas
E caem separadas,
Deslealdade,
Aproveitar a noite para dividir sozinha
Em 2 quantas vezes há 2?
Um, fora a tabuada, há dois para mim
Nada para ti.
Desfigurar os algarismos
Mudar operações
Mascarar números

Divisão
Na sombra da divisão
Vislumbro também amor
A nosso irmão
Dividir pão
Construir liberdade
Timor

Multiplicar (X)

É beleza,
É um que vem de longe, que ama,
Que multiplica,
É uma videira que se enche de sarmentos
Todos iguais, todos diferentes
Um toca, outro pinta,
Outro simplesmente vive,
Olhinhos pestanudos
Cabelos negros uns,
Louros outros

Multiplicar
É ver despertar a primavera,
Roseiras ao sol plenas de vida
árvores em flor prometendo frutos
é infinito

Na vida, a tabuada
Pode ser leve
Pode ser pesada

Natal 2007


NATAL 2007
Caros amigos e colegas,
Para dar maior calor aos meus votos de Feliz Natal que aqui vos envio, transcrevo um poema, do poeta madeirense, Cabral do Nascimento:

NATAL AFRICANO

Não há pinheiros nem há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz…Mas é Natal.

Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical

Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual

Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém são velhas
E a noite é Noite de Natal

Cancioneiro 1976

BOAS FESTAS
Maria80

Tontice Precoce


A pequena Rosália era esperta como o azougue, não sossegando um só instante sentada.
Gorducha, tinha molas nas nádegas que a faziam levantar, andar aos pulos, na viveza descuidada e sacudida, como de cachorrinho com pulgas, que não se aquieta. Foi pena não ter nascido rapaz, mas cada casal tem de se contentar com a sorte que Deus lhe deu: - houve primeiro uma menina, mas o rapaz viria depois, na profecia da senhora comadre, e assim foi, como o predito.
Rosália tinha uma manifesta aversão para a cartilha, e nisso estou com ela, porque conheci o martírio de soletrar.

Que método enfadonho de aprender a ler, na toadilha indigesta, cantarolada, à velha moda da melopeia sem nexo!:

Traz / trez / triz / troz / truz /

E sempre o mesmo artifício marcante pelas vogais seguidas, até que se chegue a formar, lá para o fim, uma frase que se entenda.

Ainda João de Deus não tinha iluminado as escolas coma atraente Cartilha Maternal, inspirada pelos anjos.

Muito beliscão e chibata, senão ‘a menina de cinco olhos’, - a rude palmatória que distribuía
bolos pelas mãosinhas inchadas das crianças, castigando num berreiro de enternecer, sofrearam seus ímpetos, aquietados com o Hino do Amor, do rouxinol ao Menino Jesus.

Prometeu o poeta educador, ao despedir-se levando saudades deste mundo, que em chegando ao outro, escreveria, mas a censura celeste é apertada, para a crítica, e ainda não teve tempo ou portador.

A memória auxiliada pela inteligência uma à outra se completam a garota tinha memória em abundância, e dava gosto vê-la desengaçar cantilenas , como uma boneca falante, accionada pela destorsão de uma mola, e trautear:

Em Dezembro vinte e cinco
Meio da noite chegado,
Um anjo ia no ar
Dizendo: - Ele é já nado.

Pergunta do boi: - Aonde?
La mula pergunta: - Quem?
Canta lo galo: - Jesus.
Diz la ovela: - Belém.

E depois:

Um pastor vindo de longe
À nossa porta bateu.
- Vinde todos bem depressa
Lo Deus Menino nasceu.

Este recado tivemos,
Já meia noite seria
Estrêlas no céu. Lá vamos,
Dar parabéns a Maria.

Do povo saiu a poesia narrativa de tradições, em fomento doce, desdobrado, com que se ergueram as epopeias.

Apertada em restrita área, alheia a mais amplos horizontes e à evolução das coisas, a gente do campo é qual passarinho em acanhada gaiola, ignorando a amplidão dos ares e o matiz dos jardins.
Crescido na prisão, a saltitar apenas entre acanhados poleiros, nunca teve a sensação do vôo e das altas ambições.

Assim, é mais feliz.

Nem sempre a canção popular tem a mesma simplicidade, havendo uma baralhada de crenças e superstição, com barbarismos, deturpações e corruptelas, senão desbragada linguagem, por vezes numa inconsciência do conceito, não compreendendo o povo, o alcance do trovador que a ditou.

Quem ensinava reza à Rosália era uma tia madrinha, tia também do pai, velhota dona da casita onde todos viviam, meeira de três alqueires de terra de pão, na Lomba, e quatro barris de vinho, no Chão da Várzea, com o senhor morgado, a partir. Em nova, fôra criada de um cónego fidalgo, que lhe deixou em testamento as pesadas fivelas de prata e a calçadeira do mesmo metal, pelo cuidado havido em pontear-lhe as meias encarnadas, e aprontar sempre a horas, bem lustrosos os sapatos.

Tinha ela, últimamente, colocado no oratório, as ditas fivelas, como lembrança para rezar, mesmo antes de lavar a cara, um terço em benefício da alma do seu antigo patrão. Vê-se bem que estava, um tanto caduca, pelo amolecimento cerebral.

A pequena andava, um dia, ao sol, à caça das lagartixas, com um caulesinho de balanço, armado em laço corredio, e uma boguinha de cuspo, no extremo, para servir de engôdo, quando a velhota a chamou pela terceira vez:
- Rosália! Não ouves, ó Rosália? Deixa essas bichas peçonhentas que ainda teem vida, depois de azoigadas (mortas). Anda daí, que ainda não estás segura no Credo, minha cabecinha de vento.
- - Lá vem a madrinha com o diabo da reza, em que também já não acerta no que diz.
- Abrenúncio! Foge cão ardido, não atentes os cristães.
- Benzendo-se, endireitou-se sobre a cadeira carunchenta de vimes, num esforço penoso para os seus achaques.
- - Vamos a isto, vai dizendo comigo.
A pequena tinha razão o Credo andava estropiado em falhas de memória, embora o tivesse sabido na perfeição, mas agora a velhota com ferrugem na engrenagem do pensamento, fundia as palavras com equivalente ressonância:
…Jesus Cristo um sócio filho… padeceu sobre pontes e telhados (sob Põncio Pilatos) etc. etc.
sentia desgrudar-se-lhe o tampo do cérebro, a escoar os miolos num vazio escaldante.
Apressou então o resto do Credo, com ansiedade:
…desceu aos infernos ao terceiro dia…
- ó madrinha, isso que quer dizer?!
- Já soube muito bem explicar esta passagem, mas doi-me as fontes a latejar. Fica para outro dia.
Rosália bateu às palmas, deu dois pulos de contente, e foi-se a cantarolar:

Padre nosso pequenino
Deus me leve a bom caminho
Santo Cristo ajoelhou
E seu sangue derramou!

Coisa má me não atente
Nem de noite nem de dia
Nem em pino do meio dia.

Aquilo é que era uma reza boazinha, no rodar da dobadoura, sem embrulhar a meada
A velha ficara pensativa. Sobressaltava-a aquele dizer do Credo, e poz-se a ruminar
Como era a explicação do senhor cónego – que Deus tenha em seu reino de glória.
Rosália é muito esperta e quer saber como foi aquele terceiro dia nos infernos! É onde baquearam os anjos maus?!
-Cruzes! Valha-me Santo António. Arrenego dos demónios.

Ressoavam-lhe cavamente rouquidos de falta de fé. Santo António, de certo não me vem auxiliar, depois que me puz mal com ele, e agora nem lhe rezo, nem lhe dou bom dia ou boa tarde, por ter deixado secar a laranjeira, não curando o mal de olhado que lhe aferrou a mulher do serralheiro.

Acudiu-lhe humildemente recitar uma oração que ela dizia ser em latim:

Magnifica meia dom. Altares meus, atormento-vos, eu. A corda é sua, a braga é sua, aqui me respecto com o seu militaire. É da graciona, pregena, pregena, tormento-vos êna…(1)
Não devia amofinar-se e serenar o vesúvio das heresias pronunciadas.

A intenção é que é tudo. Elevara piedosamente o espírito aos céus, porém já não sabia convenientemente exprimir-se, e não tinha o perfeito conhecimento das barbaridades vomitadas.
Entrara no período da tontice, gasto o vigor intelectual em demasiados exercícios de piedade, e o físico amarfanhara-se pelos trabalhos e canseiras domésticas.

(1) – Consegui a trôco de uns vintens, que me fosse ditada em uma das freguesias rurais.
ALBERTO ARTUR

Alberto Artur Sarmento


O Diário de Notícias do Funchal, publicou, há já algumas semanas, um artigo sobre o escritor madeirense acima mencionado:
“ O Tenente-Coronel Atlberto Artur Sarmento foi um dos mais prestigiosos intelectuais madeirenses da 1ª metade do século XX…” esta notícia fez-me recordar um ente tão querido. Tem uma obra vastissima, acerca de assuntos vários sobre Naturismo, História Insular,Folclorista etc.
Era eu criança e fiz-lhe o seguinte pedido – Tio escreva um livrinho de historias porque esses assuntos científicos não são para a minha idade. Mais tarde foram editados dois livrinhos de contos dedicados a mim, sua sobrinha: Quadros sem aro e Folhas ao vento, dos quais eu seleccionei um, que passo a transcrever:

NEVOEIROS DE VERÃO

Leve, corriqueiro, corre veloz, pelo estio, o nevoeiro.
Nasce em vapor de água, insubmisso, no bafo da atmosfera, frequente nas regiões altas, em saturação. Ligeiro, esfria, condensado, em poeira liquída, nas minúsculas gotinhas suspensas, de tão fraca densidade, que se unem em cortina e o horizonte se acanha, então, fusco, tapado, como núvem tombada e de arrasto pela superfície, na extensão que véda, translúcida, logo apertada, opáca, quando mais se concentra, e a distância é pouca no arrenégo da visão toldada.
Êle aí vem, o nevoeiro, por entre o pinheiral cerrado, rasgando gazes, em farrapos pela ramaria. Côa-se, desvanece, engasgalha, escorre, foge, resoluto e submisso, à direcção da aragem.
Estende-se, encosta abaixo, para marinhar acima, pela ravina oposta. Mergulha e sobe, volúvel, pelo vale aberto.
Arranha fiandeiro, emaranha, mas discorda, abranda e se esvai.
Além, um outro nevoeiro mais velho, escapado por detraz dos montes, vindo a espreitar a portela, desiquilibra-se e tomba, em cascata de algodão. E assim mais afoito, mais leve, menos denso se impõe, mas, a fugir se cansa, e se dissolve, desistindo da perseguição.
Nevoeiro espalhado pela zona saturada, é um lençol aos rasgões, em cama de gente pobre, rôto, onde houve briga na acomodação e se fez a paz, quando o sono veio pesado.
Visto de cima, duma eminência, não longe, as rochas dos cabêços degolados, caras porém prazenteiras, escanhoados os montes soerguidos, sôbre a espuma de sabão em flócos brandos.
Aquietado o panorama é êsse, como se alguém tivesse visto o primitivo dos tempos geológicos da paísagem oceânica, inicial da formação das Ilhas emergidas de dôrso à-flor, incertas de base, sem consolidação, a formar recortes de pontas e promontórios, arquipélagos esparsos, mal compostos.
O sossêgo não dura, é certo. Há quebradas e ligações, repulsas nas afluências bipartidas, onde se formaram enseadas e baías, em requebros inquietos,e tudo isto efémero, rolante, suspenso, elevado entre nuvens atribuladas, mudas, branqueando indecisas, sem atinar numa finalidade.
A névoa vai, depois em desgaste.
Raleia na espessura, desfaz a touca apertada de fólhos, destramando o fio pela malha frouxa, inconsistente.
O sol não quere brincos, assim a fingir de lua pálida, constrangida, nem tão pouco, fazer de judeu amortalhado, envolto em váras de linho, formando um embrulho volumoso. Ressuscita, desperta, olha tor um ralo aberto, radiante, em disco de oiro
Retoma calôr, esgarça, repele a mortalha, avança, dissolve e varre, mostrando o dossélde setim luzente no céu de anil.
De joelhos, o nevoeiro cabisbaixo, no sopé dos montes, pede perdão das ousadias da sua água em pó. Recua, foge, chora, sacudindo aljofres sôbre a terra, gôtas de orvalho, bêbedas de luz, água fecundante que se transforma, depressa, em seivas e frutos na grande retorta da Natureza.

1) Alberto Artur, Quadros sem aro, Desenhados à pena na Ilha da Madeira, Funchal, MCMXLIV, Tip. Eco do Funchal, pag. 8t

O MEU VIZINHO JOÃO


Ao regar o meu jardim tive a infelicidade de dar uma grave entorse que me obrigou a caminhar de canadiana e mesmo com esta ajuda, claudicava muito.
O meu vizinho João ao ver-me passar neste estado, mandou à minha casa a sua esposa, figura gorda e bem enfeitada com ouro, para oferecer os seus préstimos, porque “somos uns para os outros”.
Como recusar este espírito de solidariedade?
Aceitando o “tratamento de aberto” tão generosamente oferecido.
Assim, todas as manhãs, nove dias “a reio” passou o meu vizinho a visitar-me com um sorriso nos lábios deixando entrever dois a três dentes de ouro; num dos dedos usava um anel de aço contra “o ar que passa”.
Recebia-o na minha sala cujas paredes estremeciam com o teor das nossas conversas.
Uma vez instalados nos maples, estendia na sua direcção o pé doente, ele, pegando num novelo de lã e numa agulha grossa, começava por perguntar-me: - Eu o que curo? Ao que eu tinha que responder, sem errar – carne quebrada, aberta ou “dementida”. Ao mesmo tempo que ele cosia o novelo, recitava religiosamente a seguinte oração: é isso mesmo que eu curo, se é carne quebrada volta à tua casa, se é “dementida” torna à tua vida, se é nervo torto toma o teu soldo, assim como neste novelo coso. Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus, assim como esta é a verdade assim soldes tu; vai-te com o SSS Sacramento o mal para fora o bem para dentro. Cuidado com esta frase, porque se é dita ao contrário não há cura.
Terminado o “tratamento” seguia-se um diálogo ameno. Recordo encantada as conversas com este homem, figura de emigrante que voltou ás suas origens são e incorrupto como saíra. Como trabalha nas suas terras o assunto incidia especialmente sobre o cultivo das semilhas, couves, etc. Geralmente o jardim em frente à minha casa era regado pela manhã
e o ruído da água dava ao ambiente um clima campestre. – Sr. João, perguntei-lhe um dia, acha que eu tenho mau olhado? Ele olhou seriamente para mim por uns segundos, - não, não tem, se tivesse eu ficava com os olhos rasos de água. Sabe a Sra. Professora (é assim que ele me trata) há gente que não pode ver nada. Eu tinha uma abóbora dum tamanhão, num corredor, lá em S. Vicente, um vizinho de mau olhado disse-me: vou deitar a abóbora ao chão, e deitou mesmo! Fui-lhe às ventas, dei-lhe uma estalada.!!!
-Sr. João, como vai a sua esposa? – Ela agora está boa, passou-lhe uma “ponta d’ar”, mas eu curei-a. – O Sr. João também cura “d’ar”? Ah sim, respondeu-me ele, e passou a recitar:
Jesus Cristo foi nascido, na Divina Encarnação tirai o ar e o frio de cima deste cristão; ar frio vai pr’a serra, ar frio vai pr’ao mar, não oiças nem galo nem galinha cantar.
Eu ficava como que hipnotizada neste ambiente de magia. – Sra. Professora tenha cuidado com o sol na cabeça, fica-se muito esquecidos! Mas se for preciso eu também sei curar. Nove dias “a reio”, tapa-se a cabeça com uma toalha de linho com cinco grãos de trigo e diz-se assim: a Sra. Santa Iria pelo mar ia curando o seu filho, do sol, da calmaria, encontrou a Virgem Maria que lhe perguntaria como curaria com alva branca e um vidro de água fria; vai-te com o nome de Deus e da Virgem Maria.
Por vezes eram os cães vadios da minha rua que ao ladrar me arrancavam do encantamento
causado pelas conversas do Sr. João, então “acordava” e dizia-lhe amigávelmente – Muito obrigada vizinho, até amanhã se Deus quiser.
Como a minha saúde está garantida com este ingénuo e bondoso amigo!!!
Observação: a cura d’aberto é compatível com fisioterapia.
Maria 80

Fé Ingenua


Maria de Jesus era a filha mais velha do caseiro das terras que sua madrinha possuia em Machico. Com dezasseis anos apenas, mas ‘deitara corpo’, esperta, viva, aprendera a ler e a escrever com facilidade e então a tabuada e as rezas, sabia-as na ponta da língua
O seu maior desejo era servir em casa alheia na cidade.
Não era sensível às belezas naturais da sua freguesia. O belo vale de Machico, para ela, era o corredor de entrada do vento, que no Inverno e não só, flagelava os habitantes de vila. A meia coroa de montanhas que a separava dum mundo, que adivinhava aliciante, parecia-lhe o muro de uma prisão difícil de escalar, apenas por sinuosos carreiros .O mar, sim, era uma esperança de um dia embarcar naquele trémulo vaporzinho que a libertaria duma vida sem expctativas.
O pai, numa das suas idas à cidade para fazer contas da colonia, desabafou com a comadre, quanto a vida lhe era difícil com a ‘catruzada’ de filhos que tinha! – se a senhora quisesse receber a Maria de Jesus, sua afilhada, seria um desafogo! –Por acaso ando à procura de uma rapariga para ajudar a Rosa (a cozinheira) que está ficando cansada. Traga a pequena.
E Maria de Jesus, apertada num vestido de chita, sapatos de solas de pneu, os lindos cabelos louros apertados numa impiedosa trança, à cabeça uma trouxa com os seus parcos haveres, chegou a casa da madrinha.

A casa era um mundo! O pátio de entrada com dois armários de portas de vidro, cheios de louças lindas, imponham respeito; subia-se uma escada: à direita um quarto de dormir, Maria de Jesus olhou para a cama enorme, lembrou-se da sua, onde à noite, se arrumavam três irmãos para passar a noite. Ladeando a cama, duas cadeiras de braços, com uma tampa ao meio???
(mais tarde veio a saber a utilidade das caixas de prever). Ao lado um quarto de vestir, para quê, interrogou-se?
A saleta, em frente, como a madrinha explicou era para receber as visitas. E o oratório, no quarto da menina, parecia uma capelinha, com tantos santos, velas e flores!
Rosa, a criada antiga, falou-lhe de toda a família: os padrinhos, a menina Leontina, a linda senhora velhinha que tinha a boca tão pequena que só comia com colher de chá, o senhor frade, que não era frade, mas vestia como frade – cruzes! Pensou Maria de Jesus, com aquelas barbas brancas parecia o Senhor Santo Antão!!!
E a pouco e pouco a criadita, foi-se habituando à família e ao serviço. Das suas obrigações o que mais a deliciava era limpar o oratório, tinha tantos santos lindos. Que santa seria aquela com um chaga na testa? Não a conhecia. – é Santa Rita de Cássia, advogada dos impossíveis, explicou-lhe a menina, se tu, Maria desejares um coisa muito difícil pede a Santa Rita que Ela vai-te ouvir.
Vivendo naquela familia, tão desafogada, Maria de Jesus foi reflectindo que com o seu ordenadito não chegaria a lado algum. Lembrou-se então de Santa Rita, essa era quem lhe poderia dar um ‘ror’ de dinheiro, para poder concretizar alguns dos seus sonhos. E antes de alindar o oratório, Maria de Jesus passou a rezar devotamente á frente da sua advogada dos impossíveis. Não passou desapercebida tanta devoção e Leontina , um dia perguntou-lhe – Maria, o que estás a pedir a Santa Rita com tanto fervor? – Menina, estou a pedir-lhe dez contos (que para a época era uma boa maquia). E multiplicavam-se as rezas. Inexplicavelmente as orações fervorosas tiveram fim. Admirada com esta mudança de atitude, a menina teve curiosidade de saber a razão de tal desinteresse. –Então, Maria de Jesus já não rezas a Santa Rita? –Oh, menina, eu deixei a santa em paz, o que ela não se agoniava, eu a pedir-lhe dez contos e ela sem ter para mos dar!!! Já não a atento mais.

E a vida continuou, Maria de Jesus cumprindo bem as suas obrigações, agradável, amiga de todos. Passados alguns anos, Leontina, muito devota, tomou a decisão de seguir a vida religiosa
e…antes de partir para o convento, ofereceu a Maria de Jesus um poio de inhames situado na ribeira de Machico, cujo valor excedeu os dez contos que ela tanto implorara aos céus.

Foi de uma maneira prática que Santa Rita correspondeu a um pedido tão oneroso.

Maria80

Desculpas ao pato





Querido Patinho,

De certeza que pensaste que tinha sido uma grande barbaridade arrancar-te

do teu lago, onde com a família desfrutavas o prazer de viver, nadar, flutuar, pois apenas com um pequeno movimento das tuas patinhas, deslizavas suavemente sobre as águas. Julgo que os peixinhos vermelhos que habitavam no teu mundo aquático já deram pela tua falta.

Mas, olha, venho contar-te a alegria e o prazer que nos proporcionaste, a nós Homens,

Costa e Gouveia, reunidos à tua volta, cozinhado, bem temperado com amizade e simpatia. Desculpa-nos, foi à custa da tua vida, que nos sentimos tão felizes, naquele dia de sol dourado, a família reunida a saudar o casalinho que está a se preparar para ‘arrancar’ a sério, para a vida. Reflecte, patinho querido, no que à tua volta se desenrolou: um convívio familiar cheio de calor humano, as crianças a brincar, o par de noivos a noivar, os adultos a saborear tua carninha gostosa, em conversa amena, as idosas a recordar o passado.

Eu julgo que este quadro irá ajudar-te a aceitar a tua triste sina e pensa que serás sempre recordado. Se não tivesses estado entre nós, num arroz gostoso, quem se lembraria, jamais, de um vulgar pato que nadava, algures, num pacato lago.

Maria80

Coctail


CONVÍVIO SOCIAL
Tal como as pedras do calhau são delapidadas, esfregadas, alisadas pelas marés, assim o tempo, os anos, nos vão moldando, modificando em vários aspectos. Quando eu era jovem adorava o convívio social, os preparativos, a toilete, a jóia a usar, mas actualmente, só na intimidade, no convívio de óptimas e sinceras amigas, eu não me sinto invadir por uma sensação de cansaço, de vazio, esse que eu deixo transparecer no texto abaixo:

COCTAIL
O cair da tarde é a hora por excelência para encontros de sociedade. Os diversos extractos sociais fazem-se representar por políticos reluzentes, rubicundos, altos dignitários da Igreja, logo rodeados por pias matronas, os diplomatas circunspectos que beijam religiosamente a mão às senhoras, os familiares, alguns caquécticos a sorrir complacentemente, já incapacitados para acompanhar os diálogos à sua volta, as amigas que se beijam esfusiantemente, etc…
…”olhai e vede como eles se amam”…
Retalhos de conversa à minha volta:
…é uma ofensiva arrogante contra os direitos e a cultura…
…é certo que as leis do ruído devem ser respeitados, mas é uma manifesta má vontade contra
as tradições da Igreja…
…a ineficiência da polícia permite que se agridam os transeuntes até com spray nos olhos…
…o bebé quando é esperado…
…estou a convalescer duma gripe pertinaz…

Lá fora, no jardim, o sol está a esconder-se por detrás das árvores, desinteressado de tanta futilidade e ao olhá-lo fugidio, lembro-me de outros fins de tarde em que as nuvens coradas de tanto brincar com o astro Rei se vão diluindo nas sombras do crepúsculo; de outras tardes
em que ouvia, à distância, os seminaristas a cantar as vésperas, na capela do antigo seminário, em tom ritmado; de outra tarde em que o Sol já mortiço, veio beber calor humano, brincar com as chávenas e os sobejos de um chá gostoso e iluminar os cabelos de um grupo de amigas que, à volta da mesa, me olhavam com sincera afeição.
Distraída com os meus pensamentos, partilhava da conversa com palavras vazias. A pouco e pouco começo a sentir os passinhos lentos da tarde a encaminhar-se para a noite, olho para o relógio, está na hora de elegantemente sair, mas é da praxe da família que os convivas assinem o Livro de Ouro, principiei a escrever o meu longo nome, lentamente, para amolar quem esperava pela sua vez,

MARIA TERESA DE MORAIS SARMENTO RODRIGUES HOMEM DE GOUVEIA,
feliz por não me chamar apenas Maria Gouveia.

Margaridas

DINASTIA DAS MARGARIDAS:

Em família sempre prestei homenagem ao nome MARGARIDA, pois assim se chamaram a minha bisavó, avó e posteriormente minha filha e um das minhas netas.

Vejamos o que a minha Margarida, a terceira da dinastia, pensa a este respeito.

O PORQUÊ DE ME CHAMAR MARGARIDA:

Margarida é o nome de uma flor, eu sei! Há quem não as aprecie porque o seu cheiro é um pouco desagradável, mas de uma grande beleza, decorativas, dignas de enfeitar o mais nobre salão; existem também as campestres, à beirinha das estradas, agitando-se à mais pequena aragem que por elas passa, outras mais atrevidas tentam subir as encostas em busca de mais sol.

Há quem prefira as rosas pois o seu perfume é mais atractivo, flor preferida pelos apaixonados que adoram presentear as suas amadas com lindos bouquets enfeitados com belos laços coloridos, mas os espinhos? Quem é que não se lembra de nunca ter picado os dedos nesses traiçoeiros picos de tão magníficas flores?

As minhas duas bisavós: Margarida de Sabóia e sua filha Margarida Teotónia, eram como as flores campestres, belas mas resistentes, que não se deixavam desfolhar à mais pequena aragem, eram mulheres firmes e de garra.

Sempre gostei do meu nome! Não me perguntem porquê? Talvez porque toda a minha vida ouvi falar destas minhas bisas, da sua simpatia e bondade.

Minha mãe adorava essa sua grande avó e ouvia-a com gosto desfiar suas recordações:

Histórias da sua infância, na Quinta Margarida, o estudo prolongado de piano, o carinho com que a criada lhe preparava, numa terrininha de loiça azul, uma açorda bem gostosa, para lhe dar ânimo para continuar com o seu trabalho; dos brincos de ouro, com franjinhas, que me pertencem actualmente, comprados com o fruto do “negócio” da venda dos ovos da sua querida menina à minha trisavó, pois alguns pintainhos da ninhada tinham lhe sido atribuídos. Os passeios a cavalo, que tanto apreciava, a descrição do seu fato de amazona, enfim um desfilar de doces lembranças.

Lembro-me dela vagamente, pois não tive o privilégio de crescer a seu lado, somente através das histórias contadas pela minha mãe, muitas vezes com os olhos húmidos de emoção.

Cresci e verifiquei que tinha herdado o seu nome, que tanto preso, e sinto-me como uma bela margarida, colhida no seu jardim e pousada no seu regaço.

Gostaria de possuir algo mais da sua personalidade mas guardo como uma relíquia o seu nome, que para mim é um tesouro.

E se um dia mais tarde eu tiver netos, resta-me a consolação de que serei também uma avó Margarida.

Margarida

Nossa Senhora do Carmo


Senhora, Porque Sois a predilecta do Pai; porque o espírito santo realizou em vos a encarnação da palavra; porque sois o modelo da igreja e nela ocupais o lugar mais alto e também mais próximo de nós, porque sois conhecida como Mãe de Deus, Mãe de Cristo e Mãe dos homens, porque todos os crentes vos chamam bem – aventurada, porque temos no vosso Escapulário um sinal de protecção e de união ao Salvador, e um programa das vossas virtudes, porque na vossa promessa ofereceis ajuda nos perigos do espírito e do corpo, recorro a vós, medianeira universal entre Deus e os homens, e me consagro a honrar-vos sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo, em obsequeio do nosso senhor Jesus Cristo. Ámen.

Igreja do Carmo – Funchal

Uma manha muito especial


Naquela manhã tive a sensação que o sol se levantara mais cedo, no desejo de ir brincar com as lindas crianças
Vestidas de branco, que enchiam o adro da Igreja de Sta. Luzia, iluminar seus cabelos enfeitados com flores e fitas, fazem
brilhar mais e mais os seus olhinhos cheios de expectativa pela cerimónia que as aguardava.
Fernanda de Castro refere-se a este evento, com muita beleza e espiritualidade, no seu poema:

PRIMEIRA COMUNHÃO

Senhor,
Pouco resta no mundo que mereça
O vosso olhar.
A Humanidade, sem graça, é triste…
Pombas de asas cortadas, rosas murchas,
Povoam vosso altar!

Senhor,
Pouco resta no mundo que mereça
A vossa graça.
Nas cearas do Céu alastra o joio,
A colheita do amor é pobre e escassa.

Senhor,
Algo porém, no mundo ainda merece
A cruz e a palma
Da vossa glória… As almas das crianças
Açucenas do Céu, ainda são almas,
Alma que é mais dos anjos que dos homens,
Alma que sabe a flor, a fonte a pão
E a Vós sobe, puríssima e radiosa
Nesta manhã de Primeira Comunhão.

FERNANDA DE CASTRO