segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Uma visita de pêsames


Acordei muito, muito cedo, os melros pretos ainda não tinham principiado as suas saudações e diálogos. O silêncio era tão profundo que os meus ouvidos nada tinham para escutar. Então vieram as recordações de outras manhãs distantes em que acordava com o ruído das carroças que transportavam legumes, frutas e outros produtos mais, para abastecimento da Praça do Chile . As mulheres da fava rica eram tão madrugadoras como os melros pretos do meu jardim. “Ó fava riiiiiiiiica”. E a pouco e pouco vinham surgindo os pregões da laranja “- olha a boa laranja ,laranja boa…” e o homem dos queijos “-ó queijo saloio…” o dos morangos “- são de Sintra…” e as peixeiras “-ó freguesa é para acabar, rabo , cabeça e posta…”!



Que saudades de toda aquela envolvência ao meu despertar na Alameda D. Afonso Henriques!!!
A nossa mudança de residência para a capital, foi uma grande e boa aventura. Cidades diferentes, diferentes os costumes. Nessa época 1949/50 para ir às compras à baixa lisboeta era de bom tom cuidar da toillete, as luvas e os chapéus contribuíam para dar uma nota chic, se assim não fosse, como entrar descontraidamente na Pastelaria Império nas Escadinhas de Sª Justa? E as estreias no cinema S. Jorge sempre com magnifico recital de órgão nos intervalos da exibição dos filmes?
O primeiro inverno que lá passámos foi difícil, havia a preocupação do “abafar”, quer para sair quer para estar em casa. Lembro-me perfeitamente das nossas toilletes caseiras, minha e da minha mãe, dessa tarde que estou a recordar; eu vestia saia de xadrez vermelho, preto e branco, camisola preta, colar vermelho. A minha mãe: saia de xadrez em vários tons de verde, pull-over verde bandeira, muito alheadas do falecimento de uma tia, que tinha ocorrido no Funchal e com quem tínhamos cortado relações. Assim quentinhas fazíamos crochet, pois o nosso dia-a-dia sofrera grandes alterações, longe estavam os cuidados com o jardim, tais como zelar pela nossa colecção de cravos preparar as sementeiras para encher de flores os canteiros na primavera, etc. na capital, como as nossas amigas lisboetas fazíamos crochet.
Casada de fresco transformei-me numa dona de casa eficiente, para os lanches havia sempre bolos e bolinhos e como a temperatura do inverno o exigia, substituímos o habitual chá por deliciosos licores.
Nessa tarde que agora estou a recordar, ocupadas com os nossos trabalhos manuais, fomos interrompida pela empregada que veio anunciar a chegada de duas senhoras, que nos aguardavam na sala. Óptimo! Fomos recebê-las com alegria, as amigas são sempre bem-vindas!
Ao vermos as visitantes, os nossos corações caíram ao chão, felizmente sem ruído. Era uma visita de pêsames !!!!! Duas amigas da minha mãe, protocolarmente vestidas para a ocasião, luto rigoroso nos trajes, nos adereços e nas expressões. A mais velha, vestia com elegância e usava um lindo chapéu preto, coberto com um véu salpicado de bolinhas pretas de veludo que ajudavam a esconder seus olhos terrivelmente extrábicos. A irmã vestia tailleur de alta costura, posso jurar, que era complementado por chapéu com voltas e laçadas de fita de cetim negro, como negros os melros que habitualmente saltitavam nas árvores do meu jardim.
“Embrulhamos” instintivamente a nossa jovialidade, mas nossas roupas parenteavam que nem um pouco estávamos a sentir mágoa pela falecida.
Entre amigas, um passado de bom convívio e companheirismo superou a nossa desintegração e falta de solidariedade para um acontecimento que deveria ter sido sentido com mágoa. “Senti-me nua na praça”.
À saída, depois de uma despedida cordial, logo que o elevador desapareceu, olhei para a minha mãe, descoroçoada com tanta inconveniência e disse – óh mãe, e agora!!!
A mãe, tomou o meu braço e calmamente respondeu-me – Agora vamos beber o nosso licorzinho!
Maria80