terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Tontice Precoce


A pequena Rosália era esperta como o azougue, não sossegando um só instante sentada.
Gorducha, tinha molas nas nádegas que a faziam levantar, andar aos pulos, na viveza descuidada e sacudida, como de cachorrinho com pulgas, que não se aquieta. Foi pena não ter nascido rapaz, mas cada casal tem de se contentar com a sorte que Deus lhe deu: - houve primeiro uma menina, mas o rapaz viria depois, na profecia da senhora comadre, e assim foi, como o predito.
Rosália tinha uma manifesta aversão para a cartilha, e nisso estou com ela, porque conheci o martírio de soletrar.

Que método enfadonho de aprender a ler, na toadilha indigesta, cantarolada, à velha moda da melopeia sem nexo!:

Traz / trez / triz / troz / truz /

E sempre o mesmo artifício marcante pelas vogais seguidas, até que se chegue a formar, lá para o fim, uma frase que se entenda.

Ainda João de Deus não tinha iluminado as escolas coma atraente Cartilha Maternal, inspirada pelos anjos.

Muito beliscão e chibata, senão ‘a menina de cinco olhos’, - a rude palmatória que distribuía
bolos pelas mãosinhas inchadas das crianças, castigando num berreiro de enternecer, sofrearam seus ímpetos, aquietados com o Hino do Amor, do rouxinol ao Menino Jesus.

Prometeu o poeta educador, ao despedir-se levando saudades deste mundo, que em chegando ao outro, escreveria, mas a censura celeste é apertada, para a crítica, e ainda não teve tempo ou portador.

A memória auxiliada pela inteligência uma à outra se completam a garota tinha memória em abundância, e dava gosto vê-la desengaçar cantilenas , como uma boneca falante, accionada pela destorsão de uma mola, e trautear:

Em Dezembro vinte e cinco
Meio da noite chegado,
Um anjo ia no ar
Dizendo: - Ele é já nado.

Pergunta do boi: - Aonde?
La mula pergunta: - Quem?
Canta lo galo: - Jesus.
Diz la ovela: - Belém.

E depois:

Um pastor vindo de longe
À nossa porta bateu.
- Vinde todos bem depressa
Lo Deus Menino nasceu.

Este recado tivemos,
Já meia noite seria
Estrêlas no céu. Lá vamos,
Dar parabéns a Maria.

Do povo saiu a poesia narrativa de tradições, em fomento doce, desdobrado, com que se ergueram as epopeias.

Apertada em restrita área, alheia a mais amplos horizontes e à evolução das coisas, a gente do campo é qual passarinho em acanhada gaiola, ignorando a amplidão dos ares e o matiz dos jardins.
Crescido na prisão, a saltitar apenas entre acanhados poleiros, nunca teve a sensação do vôo e das altas ambições.

Assim, é mais feliz.

Nem sempre a canção popular tem a mesma simplicidade, havendo uma baralhada de crenças e superstição, com barbarismos, deturpações e corruptelas, senão desbragada linguagem, por vezes numa inconsciência do conceito, não compreendendo o povo, o alcance do trovador que a ditou.

Quem ensinava reza à Rosália era uma tia madrinha, tia também do pai, velhota dona da casita onde todos viviam, meeira de três alqueires de terra de pão, na Lomba, e quatro barris de vinho, no Chão da Várzea, com o senhor morgado, a partir. Em nova, fôra criada de um cónego fidalgo, que lhe deixou em testamento as pesadas fivelas de prata e a calçadeira do mesmo metal, pelo cuidado havido em pontear-lhe as meias encarnadas, e aprontar sempre a horas, bem lustrosos os sapatos.

Tinha ela, últimamente, colocado no oratório, as ditas fivelas, como lembrança para rezar, mesmo antes de lavar a cara, um terço em benefício da alma do seu antigo patrão. Vê-se bem que estava, um tanto caduca, pelo amolecimento cerebral.

A pequena andava, um dia, ao sol, à caça das lagartixas, com um caulesinho de balanço, armado em laço corredio, e uma boguinha de cuspo, no extremo, para servir de engôdo, quando a velhota a chamou pela terceira vez:
- Rosália! Não ouves, ó Rosália? Deixa essas bichas peçonhentas que ainda teem vida, depois de azoigadas (mortas). Anda daí, que ainda não estás segura no Credo, minha cabecinha de vento.
- - Lá vem a madrinha com o diabo da reza, em que também já não acerta no que diz.
- Abrenúncio! Foge cão ardido, não atentes os cristães.
- Benzendo-se, endireitou-se sobre a cadeira carunchenta de vimes, num esforço penoso para os seus achaques.
- - Vamos a isto, vai dizendo comigo.
A pequena tinha razão o Credo andava estropiado em falhas de memória, embora o tivesse sabido na perfeição, mas agora a velhota com ferrugem na engrenagem do pensamento, fundia as palavras com equivalente ressonância:
…Jesus Cristo um sócio filho… padeceu sobre pontes e telhados (sob Põncio Pilatos) etc. etc.
sentia desgrudar-se-lhe o tampo do cérebro, a escoar os miolos num vazio escaldante.
Apressou então o resto do Credo, com ansiedade:
…desceu aos infernos ao terceiro dia…
- ó madrinha, isso que quer dizer?!
- Já soube muito bem explicar esta passagem, mas doi-me as fontes a latejar. Fica para outro dia.
Rosália bateu às palmas, deu dois pulos de contente, e foi-se a cantarolar:

Padre nosso pequenino
Deus me leve a bom caminho
Santo Cristo ajoelhou
E seu sangue derramou!

Coisa má me não atente
Nem de noite nem de dia
Nem em pino do meio dia.

Aquilo é que era uma reza boazinha, no rodar da dobadoura, sem embrulhar a meada
A velha ficara pensativa. Sobressaltava-a aquele dizer do Credo, e poz-se a ruminar
Como era a explicação do senhor cónego – que Deus tenha em seu reino de glória.
Rosália é muito esperta e quer saber como foi aquele terceiro dia nos infernos! É onde baquearam os anjos maus?!
-Cruzes! Valha-me Santo António. Arrenego dos demónios.

Ressoavam-lhe cavamente rouquidos de falta de fé. Santo António, de certo não me vem auxiliar, depois que me puz mal com ele, e agora nem lhe rezo, nem lhe dou bom dia ou boa tarde, por ter deixado secar a laranjeira, não curando o mal de olhado que lhe aferrou a mulher do serralheiro.

Acudiu-lhe humildemente recitar uma oração que ela dizia ser em latim:

Magnifica meia dom. Altares meus, atormento-vos, eu. A corda é sua, a braga é sua, aqui me respecto com o seu militaire. É da graciona, pregena, pregena, tormento-vos êna…(1)
Não devia amofinar-se e serenar o vesúvio das heresias pronunciadas.

A intenção é que é tudo. Elevara piedosamente o espírito aos céus, porém já não sabia convenientemente exprimir-se, e não tinha o perfeito conhecimento das barbaridades vomitadas.
Entrara no período da tontice, gasto o vigor intelectual em demasiados exercícios de piedade, e o físico amarfanhara-se pelos trabalhos e canseiras domésticas.

(1) – Consegui a trôco de uns vintens, que me fosse ditada em uma das freguesias rurais.
ALBERTO ARTUR

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