terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Uma Tarde Lisboeta




Quando vivia em Lisboa, recebi, duma amiga, convite para assistir a uma passagem de modelos de uma modista de alta costura, Mme Lopez.
A moda da Primavera desse ano, cinquenta e tal, era revolucionária, as linhas justas deram lugar às soltas que deixavam adivinhar o belo ou o roliço corpo que cobriam.
Houve troca de telefonemas, pois apesar da estação, desencadeou-se nessa tarde um temporal impiedoso…era aconselhável levarmos as nossas peles, portanto, sobre o meu vestido “inteiro” última moda, navegava um medalhão antigo num longo cordão de ouro a apontar-me o umbigo. O meu “petit-gris” dava macieza ao trage. Podre de chic!
Da minha amiga só recordo uma bela estola de vison e um chapelinho maroto cujo véu sombreava uns lindos olhos verdes disfarçando, assim, o seu ar campestre. O seu novo velho marido obsequioso, escorregadio, conduzia um opulento carro.
O salão de chá do Hotel Embaixador estava snobíssimamente repleto, cada mesa ocultava uma história; o som da música era envolvente.
Eu não era uma provável compradora, por isso “atirei-me” a observar pessoas, toilletes, adivinhar sentimentos; a orquestra tocava, tocava, seus sons ajudavam o meu devaneio.
Ao nosso lado, uma mesa era ocupada por um grupa de “tias”, mulheres artificiais, ele-
gantíssimas quanto feiíssimas que me fizeram sonhar com o Hino Nacional:

Contra os canhões marchar, marchar
,
As modelos desfilavam “lingerie”. “peignoirs” roupa que nos levava à intimidade da alcova. A música era sugestiva:

Quand’il me prends dans ses bras...
Il me parle tous bas...
.
O chá está a ser servido, magnífico, adivinhava-se dispendioso.
Os empregados apresentavam-nos bandejas de sandwiches, brioches, serviço verdadeiramente requintado.
Numa mesa próxima á nossa, uma família opulenta, os brilhantes faziam-se adivinhar pelos seus reflexos. O pai, julguei eu, figura de africanista, vestido de linho branco esquecido da chuva que se fazia sentir no exterior, respirava fortuna.
Do grupo fazia parte uma nostálgica mulata. Seriam as suas lágrimas negras?

Enquanto na senzala trabalhava o seu amor
Mãe preta embalava o filho branco do senhor…

Aqui perto, despertou-me a atenção, uma figura seca, mística, seráfica, parecendo estéril de sentimentos. Agarrava um crucifixo de ouro que usava ao peito, devia estar pensando: oh quanta vaidade, quanta veleidade… que perda de tempo nesta tarde social Aquela nem em sonhos se lembraria do bicho-homem, nunca teria sonhado nem que fosse com um bispo a bater-lhe à porta!!!

No céu, no céu, no céu eu estarei…

Um chapéu vermelho lindo, lindo, olhava para mim, assente numa cabeça ruiva, rosto gorducho, empoado, mulher de algum director de alguma empresa, Oh, eu conheço-a e pergunto-lhe em pensamento – Sara, trocas o teu chapéu por uma noite de amor?

Beja-me… Beja-me mucho.. como se fuera esta noche la ultima vez...

Os sons sucedem-se, os bolos passam, os modelos desfilam, só não reage aquela além, vestido com blazer branco, ao peito uma rosa negra como negras eram as suas olheiras, olhar sonhador, saudosa de estar ao pé de alguém? Ver olhos que se olham? Apaixonada? Arrependida?

Non, rien de rien, non je ne regrette rien…

Que giros ! Aqueles dois, visivelmente à parte do grupo que os acompanhava. Ela de boina preta, que lhe ocultava o cabelo, pedra verde alegrar o veludo negro. Estava embevecida pelo seu par, ele feioso, galante, óculos escuros a esconder olhar de conquista, paternalmente debruçado para a sua interlocutora, como paternalmente lhe assentava a mão no ombro. Pela sua atitude recitava, imaginei eu! O maroto estava a insinuar-se à custa de Miguel Torga:

Canto ou não canto as tetas da donzela/ que daqui da janela/
Vejo no limoeiro…

O desfile está no auge, vestidos para dançar em noites quentes, aguarela do Brasil, está
no ar…

Brasil, ó meu Brasil brasileiro…

Esta música faz-me lembrar um barco a partir, angústia duma separação.
O som de Ravel “acorda-me” a passagem está a terminar com a aparição de um vestido de noiva, já o Bolero no seu cresacendo, foi uma apoteose, Mme, Lopez agradece os aplausos.
Como o espectáculo está no fim o marido da minha amiga sai discretamente para ir buscar o carro.
-Terezinha, que horror, não tenho dinheiro para pagar o chá, o meu marido esqueceu-se!
Juntámos os nossos haveres, a custo pagamos a despesa. Que vergonha! Tão elegantes e nem demos uma gorgeta ao empregado!!!

Hei, você aí
Me dá dinheiro aí
Me dá dinheiro aí


Maria80

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